Em artigo publicado recentemente nos anais do VI Encontro Macro-Jê, a antropóloga Vanessa Lea (2009) discute o rótulo "Timbira", questionando a tradicional inclusão dos chamados "Timbira Ocidentais" de Nimuendaju, os Apinajé (não obstantes as diferenças culturais e lingüísticas entre ambos, já apontadas pelo próprio Nimuendaju). Apesar de, em tese, esta ser uma questão resolvida entre lingüistas, a problematização é necessária. Claro, todos os lingüistas que trabalham atualmente com os Timbira e Apinajé parecem concordar que se trata de línguas diferentes. A referência comum é o seguinte trecho de Rodrigues (1986:48):
"As línguas dos Suyá, Kreen-akarôre e provavelmente também dos Tapayúna (Beiço de Pau), no Alto Xingu, estão aparentadas mais estreitamente com o grupo Kayapó. O mesmo se dá com a língua dos Apinayé (Apinajé), em Goiás, apesar de seus falantes se considerarem descendentes dos Timbíra, hoje seus vizinhos mais próximos."Mas, na prática -- como Lea demonstra bem --, a validade do velho conceito de "Timbira" acaba sendo ratificada, paradoxalmente, por alguns do mesmos lingüistas que reproduzem a citação acima como ponto pacífico. Um dos problemas é, naturalmente, a falta de estudos comparativos mais aprofundados, dificultando a determinação do grau de diferenciação entre línguas estreitamente aparentadas; o pior problema, no entanto, é o velho e lamentável hábito de se citar os cânones sem problematizá-los, mesmo quando um cânone está em óbvio conflito com o outro.
Lea parece crer que tal questão terminológica acaba tendo conseqüências práticas, servindo para distanciar os Apinajé de seus parentes culturais mais próximos, os Kaiapó. Pode-se questionar até que ponto isto é um argumento válido: não se estaria atribuindo demasiada importância prática a um conceito que raramente se usa além da academia? Mas isto, naturalmente, não compromete em nada o mérito do artigo de demonstrar a necessidade de se repensar criticamente alguns conceitos já costumeiros.
Uma tentação a evitar seria a possível substituição de uma velha dicotomia, Timbira (+Apinajé) vs. Kaiapó, por uma nova, Timbira vs. Kaiapó (+Apinajé). Porque, no fim das contas, pode ser que dicotomias não funcionem neste caso. Em lingüística, tal tendência à dicotomização associa-se, aparentemente, a uma visão particular de como teria se dado a separação entre grupos ao longo dos séculos e a conseqüente diversificação lingüística. Essa é a visão expressa por Greg Urban (1992:94):
"As populações Jê, assim como as antigas populações Tupi, tanto quanto se pode afirmar atualmente a partir da reconstrução, parecem ter-se aproximado mais do tipo clássico de comunidade isolada. Nessas sociedades, o contato lingüístico costuma se restringir ao grupo local, e quando os grupos se dividem, aparentemente não retomam mais tarde um contato de tipo constante que possa produzir empréstimos. Esse padrão, com redes de intercâmbio entre comunidades relativamente subdesenvolvidas, é provavelmente o padrão mais antigo no Brasil."No caso dos Timbíra/Apinajé/Kaiapó, os dados (lingüísticos, pelo menos) podem sugerir exatamente o contrário. Embora sejam necessários estudos comparativos adicionais, os estudos até o momento parecem sugerir que os três formam (ou teriam formado, antes que a invasão européia acelerasse o processo migratório) um contínuo dialetal (o que implica, naturalmente, manutenção de contato), de tal maneira que os Apinajé, servindo de "ponte" entre os Kaiapó e os Timbíra, acabariam compartilhando traços com os dois.
O fato de que o Apinajé parece ser mutuamente inteligível com o Timbira e o Kaiapó (enquanto inteligibilidade entre os dois extremos, Kaiapó e Timbira, seria em princípio menos óbvia) seria um bom indício de continuidade dialetal. Um caveat: as evidências de que disponho para isto são, por enquanto, de caráter anedótico (embora corroboradas por evidências, também geralmente anedóticas, na literatura). Lingüisticamente, talvez a melhor maneira de se provar tal "continuidade" é através da detecção de inovações compartilhadas. Limito-me, por enquanto, a dois exemplos -- os reflexos das consoantes Proto-Jê *s e *w (em início de sílaba):
☞ Com o Timbira, o Apinajé compartilha o processo de fusão ("merging") entre Proto-Jê *p e *w em início de sílaba (por exemplo, *pĩ 'lenha' > pĩ; *wẽ 'falar' > -pẽ), enquanto o Kaiapó preserva reflexos separados (pĩ 'lenha', -bẽ 'falar').
☞ Com o Kaiapó, o Apinajé compartilha o fato de que a consoante Proto-Jê *s ocorre como "zero", enquanto em Timbira ocorre como /h/.
É possível que uma primeira fase no processo de enfraquecimento de *s (*s > *h) tenha ocorrido no período de unidade (Proto Timbira-Apinajé-Kaiapó) entre os três grupos, enquanto a segunda fase ocorreria já depois da separação, gradual, entre eles. Os Panará e os Suyá, naturalmente, se separaram ainda mais cedo. É interessante que ambos preservem, como reflexo do Proto-Jê *s, a mesma consoante, /s/ (sendo, portanto, mais conservadores neste aspecto que o Timbira/Apinajé/Kaiapó). A sugestão de Rodrigues, citada acima ("As línguas dos Suyá, Kreen-akarôre e provavelmente também dos Tapayúna (Beiço de Pau), no Alto Xingu, estão aparentadas mais estreitamente com o grupo Kayapó.") não se sustenta à luz dos dados do Panará e Suyá que se tornaram disponíveis desde então [vide, a propósito, Dourado (2001), Santos (1997) e Seki (1989)].