Sunday, February 1, 2009

Ouvir e pensar em Boróro

Há algum tempo, mencionei a relação entre o ouvir e o pensar em línguas Macro-Jê, e seus possíveis correlatos culturais:

[...] em línguas do tronco Macro-Jê o ouvido (e não a cabeça, como em português) parece ser o "locus metafórico" para conhecimento/consciência. Assim, nas famílias Jê e Jabuti, a raiz para "ouvir" (que tem cognatos em ambas as famílias e é, portanto, provavelmente reconstruível para o Proto-Macro-Jê) também tem os significados de "experimentar", "entender", "saber" (Ribeiro & van der Voort 2005). E, em Karajá, "pensar" e "ouvir" são ambos expressos pelo mesmo verbo (derivado do nome "ouvido"). Ser burro é "não ter orelhas/ouvido"; perder a consciência é "entupir o ouvido/orelha"; esquecer-se é "perecer o ouvido"; lembrar-se é "acordar o ouvido"; e assim por diante (traduções aproximadas). [...]
Relendo, agora, o Esbôço gramatical e vocabulário da língua dos índios Borôro (Rondon & Faria 1948), encontro dados que demonstram a existência de fatos semelhantes também nesta família Macro-Jê: biá 'orelha, ouvido'; bia-butuN 'lembrar'; bia-gôdo 'esquecer'; etc.

Ainda continuo interessado em quaisquer possíveis respostas a minhas duas questões iniciais:
(1) até que ponto estes "esquemas metafóricos" são estáveis diacronicamente (servindo, assim, de evidência para relacionamento genético)?

(2) até que ponto podem ser emprestados (servindo, assim, como evidência de contato lingüístico, áreas lingüísticas, etc.)?

Curt e sua senhora

Em Cartas do Sertão, que reúne parte de sua correspondência com Carlos Estêvão de Oliveira, Nimuendaju vez ou outra menciona aquela que é, talvez, a personagem menos conhecida de sua biografia: "Minha mulher vai bem e lhe manda lembranças." Para alguns, esta informação pode ser surpreendente. Seus obituários, concentrados em sua produção científica e militância indigenista, não mencionam uma viúva; quem estuda a obra de Curt Nimuendaju acaba ficando com a impressão de que ele morreu solteirão.

Contribuindo para uma visão mais pessoal de Nimuendaju, o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, em artigo publicado recentemente em seu excelente Jornal Pessoal, nos oferece alguns detalhes de primeira mão sobre Jovelina, a mulher do grande etnógrafo:

Jovelina morreu anônima num dos pavilhões da Santa Casa de Misericórdia de Belém no dia 2 de novembro de 1972. Deixou de ser anônima apenas em função do sobrenome: Nimuendaju. Incorporou-o ao casar com Curt Unkel, que, por sua vez, se notabilizou ao anexar ao seu nome alemão o Nimuendaju (”aquele que criou seu próprio caminho”) dos índios apopokawa-guarani [Pinto quis dizer "Apapokuva-Guarani"], do interior de São Paulo. Esse foi o primeiro dos 30 grupos indígenas aos quais dedicou quase 40 anos de sua vida, desde que chegou ao país adotivo, em 1903, com apenas 20 anos. Mesmo sem ter formação acadêmica em antropologia, Nimuendaju realizou estudos com alto rigor científico, com ênfase sobre as populações de língua jê.

O artigo pode ser lido integralmente no website do Jornal Pessoal (requer-se cadastramento). Aliás, para aqueles que, como eu, admiram a inteligência e independência do jornalismo de Lúcio Flávio Pinto, o fato de que seus escritos estão agora disponíveis online é uma excelente notícia.