Wednesday, March 4, 2009

Piso molido

Através do grupo Tupi (aliás, uma ótima comunidade para aqueles interessados em aprender a "língua mais usada da costa do Brasil") fiquei sabendo que o cantor baiano Luiz Caldas resolveu gravar um disco de canções em Tupí -- em suas próprias palavras, "numa homenagem à língua dos nossos ancestrais". Um exemplo é a canção "Apiçá quité iandé morubixaba", cuja letra está disponível no site de Luiz Caldas no MySpace:

"Acé angaturama morubixaba caapegoara eçaetá, eçacuí, marangatuguariní mboîa çui caraíba picirongába pé tetiruan çui caátiba iandétaba iandé cemimotara irumo iandé catumbaé iandé uicobé."
A temática seria a baboseira comum em canções supostamente "engajadas", criadas por gente cujo conhecimento sobre índios parece limitar-se a gibis do Ziraldo e do Maurício de Souza. A letra acima supostamente traduz-se assim:

"Atenção para nosso chefe nosso bondoso chefe morador do mato, atento, preparado, bom guerreiro cobra do homem branco proteção para todos da floresta nossa aldeia nossa liberdade é nossa riqueza nosso viver."

Digo supostamente porque, como explica Emerson José Silveira da Costa, conhecedor do Tupí Antigo como poucos, a versão "Tupí" não tem pé nem cabeça:

"[...] a música supostamente "em tupi" não passa de uma sequência de traduções palavra-a-palavra da letra em português, resultando num palavrório que em tupi não tem sentido algum. O que mais me doeu foi ver o animal "cobra" ("mboîa") ser usado em lugar de"cobra" do verbo "cobrar" [...]"

Essa é mesmo de doer. Me faz lembrar algo que vi numa placa de elevador num dos melhores hospitais de Silver Spring (cidade com grande concentração de hispânicos, nos arredores de Washington, DC), em que ground floor 'piso térreo' foi traduzido para o espanhol como piso molido...

Tuesday, March 3, 2009

Cunha Mattos e o falar goiano

Em quanto tempo se faz um dialeto? Ou, mais precisamente, quanto tempo leva para que diferenças dialetais entre duas comunidades lingüísticas que compartilham a mesma origem se tornem perceptíveis? A resposta, naturalmente, é que "depende". Cada caso é um caso, dependendo, entre outros fatores, do grau de isolamento entre as duas comunidades.

Este é um assunto que tem me dado o que pensar, particularmente no caso do português (ou dos portugueses?) falado nos sertões do Brasil. Qual seria, por exemplo, o primeiro registro do uso do /r/ retroflexo tão característico do dialeto caipira? Como se trata de característica radicalmente destoante do português do litoral brasileiro ou da velha metrópole, seria de se imaginar que teria sido notado logo de início. Fico imaginando um cronista luso (ou litorâneo), pouco simpático aos paulistas, criticando sua maneira "bárbara" de falar o português... Dada a raridade de informações lingüísticas deste tipo nas principais fontes do Brasil colonial e imperial, comentários pessoais, ainda que puramente impressionísticos, podem vir a ser extremamente úteis para os estudos dialetológicos.

No caso do português falado nos primeiros núcleos coloniais de Goiás, há pelo menos um registro interessante, produzido um século depois da fundação de Vila Boa (1726) -- não de diferenças específicas, mas de características "melódicas" que já então distinguiam o falar goiano do falar dos paulistas. Devemo-lo ao general Raymundo José da Cunha Mattos (1776-1839), em sua Chorographia Historica da Provincia de Goyaz, concluída em 1824 e publicada na RIHGB em 1874:

"A pronunciação da gente de Goyaz é mui doce: não obstante serem descendentes de paulistas, não têm aquella aspereza guttural que se nota nos naturaes de S. Paulo, nem a affectação feminil de muita gente de provincias mais illuminadas." (p. 311)
Esta é a primeira menção à existência de características próprias ao falar dos "goyanos" de que tenho notícia. Haverá outras mais antigas, não só sobre Goiás, mas também sobre o Paraná, o Mato Grosso e outras áreas de fundação bandeirante? E quanto aos falares de outras regiões do Brasil?

Sobre a Chorographia e seu autor


Carta corografica da provincia de Goyaz e dos Julgados de Araxá e desemboque da provincia de Minas Geraes

A Chorographia Historica da Provincia de Goyaz foi escrita quando seu autor ocupava o cargo de governador das armas da província (1823-1826), sendo fonte obrigatória para o conhecimento da história e dos costumes dos habitantes de Goiás em seu primeiro século de colonização (ao lado das Memorias Goyanas do Pe. Luiz Antonio da Silva e Sousa). Nascido em Faro, Portugal, Cunha Mattos foi militar de destaque, tanto servindo a Portugal (na África e no Brasil), antes da Independência, quanto ao Império do Brasil. Desempenhou também papel relevante na vida intelectual do Império, tendo sido um dos fundadores do IHGB.

Como "forasteiro" em Goiás, Cunha Mattos tem um ponto de vista privilegiado ao escrever a Chorographia, notando fatos que escapariam a autores locais. Um exemplo é o breve comentário lingüístico transcrito acima. A atitude crítica que assume, não poupando críticas a muitas características dos habitantes da província tidas como censuráveis ("a sêde do ouro foi causa da descoberta de Goyaz, e a esperança do ouro tem sido a causa de sua ruina"), acaba conferindo legitimidade à descrição que faz de aspectos positivos (como, por exemplo, a beleza e modéstia das mulheres, a hospitalidade e a falta da pedante pretensão a nobreza, "ordinária em outros lugares", além da 'doçura' do falar goiano).

Cunha Mattos também escreveu vários roteiros dos lugares por onde viajou no Brasil, reunindo informações para a elaboração de vários mapas. Um deles (vide acima; clique para ampliar), que serve de complemento à Chorographia, está disponível online, no site da Biblioteca Nacional Digital (de Portugal). Para aqueles de nós interessados na história das populações indígenas, o mapa é particularmente valioso pela detalhada localização que dá dos aldeamentos indígenas.