Foi num artigo do abade Ignace Etienne, publicado em Anthropos em 1909, que encontrei a referência a um livreto pouco conhecido, "fort imparfait, il est vrai, mais contenant quelques détails intéressants": Os Boruns: recordações selvajens, de Alfredo Polly (Rio de Janeiro: Papelaria Mendes, 1908). O artigo de Etienne (três páginas, apenas) não traz, em si, nenhuma contribuição original: as informações históricas são de segunda mão; as informações etnográficas, pouco confiáveis; e o vocabulário "Borum" inclui, ao lado de palavras realmente Borum, várias palavras Tupinambá, a tal ponto que o abade afirma, sobre a língua dos Borum, que "on n'a pas de peine à établir qu'elle se rapproche beaucoup de celle des Tupinambas du Maranhão." As palavras teriam sido coletadas em Olivença, sul da Bahia, onde indivíduos Borum provavelmente conviveriam com indivíduos Tupinambá.
Fiquei, naturalmente, intrigado para conhecer o livreto de Polly; talvez fosse uma daquelas contribuições leigas, sem ambições literárias, eminentemente descritivas e, portanto, úteis, como a que nos legou o agrimensor mineiro Alexandre de Souza Barbosa, sobre os Panará. O livreto de Polly é extremamente raro, mas consegui encontrá-lo na seção de livros raros da Library of Congress, onde o consultei recentemente. Para minha decepção, o livro é uma obra de ficção, de um romantismo tardio (a começar pela epígrafe, famoso poema de Gonçalves Dias: "Um velho Tymbira, coberto de gloria,[...] Dizia prudente – “Meninos, eu vi!”"). Contém quatro narrativas, cujos títulos são nomes de heróis e heroínas "Borum"(romantizados, claro, à imitação do Peri de José de Alencar): "Nakmã" (p. 1-8), "Gorá" (p. 1-8), "Nhum" (p. 1-18) e "Cyrém" (p. 1-40; cada história recebe numeração de página à parte). Embora ocorram, dispersas ao longo do texto, algumas palavras Borum, trata-se de itens documentados em fontes anteriores; não há, portanto, nenhuma contribuição original ao conhecimento do léxico da língua.
À guisa de apêndice, há dois textos adicionais que, à primeira vista, pareceriam conter material descritivo útil: "O kijeme: uzos e costumes" (p. 1-4) e "O Peruhype" (p. 5-7). O primeiro fornece informações que não parecem ser corroboradas por qualquer outra fonte sobre estes índios, descrevendo a existência de três cômodos na casa (kijeme) Borum (um primeiro, ocupado por homens; um outro, para as mulheres; e um terceiro, para o armazenamento de víveres); tais informações seriam copiadas por Etienne (no artigo mencionado acima), que concluiria de boa fé: "et il faut admirer, en passant, la moralité de cette tribu qui non seulement pratiquait la monogamie, mais encore avait la coutume d'éviter la promiscuité des sexes." Informações conflitantes seriam, em princípio, bem vindas: poderiam basear-se em aspectos pouco conhecidos da cultura, não percebidos por visitantes anteriores; ou poderiam apontar para mudanças culturais desencadeadas pelo contato. Mas, no contexto da obra, é mais provável que se devam antes à imaginação do autor que a observação objetiva. O último texto é igualmente desprovido de valor informativo: é uma descrição imaginativa do Rio Peruípe, que me pareceu imitar a descrição do Paquequer n'O Guarani de José de Alencar.
Enfim, contrastando com casos raros como aquele de Alexandre de Souza Barbosa, o pequeno livro de Alfredo Polly ilustra, uma vez mais, uma oportunidade perdida, por intelectuais locais, para um melhor conhecimento dos índios. A conclusão do livrinho, embora simpática aos índios, os trata como coisa do passado (p. 4, em "O kijeme"): "Robustos e sadios, viviam assim os Boruns no seio de suas florestas admiráveis, até que a civilização os seduziu com falsas promessas de bens iluzorios, tão falsas aquellas e tão iluzorios estes, que nenhum delles hoje mais existe á face da terra!" À época em que Polly escrevia estas linhas, grupos Borum ainda vagavam pelas florestas do vale do Rio Doce, onde o alemão Walter Garbe registraria informações etnográficas e imagens valiosas, demonstrando que tais Borum ainda preservavam muito de sua cultura original. O contraste entre Polly e um Walter Garbe ilustra, assim, um aspecto ainda mais deprimente da vida intelectual brasileira de então: a subserviência do intelectual da província às modas literárias da metrópole, a tal ponto que o índio real, vizinho, vinha a ser ignorado em proveito de um índio imaginário.
Tuesday, March 20, 2012
"Os Boruns", de Alfredo Polly (1908)
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