Saturday, October 6, 2007

De missionários -- religiosos ou não

Um dos assuntos mais recorrentes na lista Etnolingüística, missionários em aldeias indígenas, está de volta. O pior sinal da trivialização de um tema está no uso de palavras-de-ordem, em vez de argumentos (o que, infelizmente, tem sido comum agora, como antes). Isto me força a começar este blog com um tema que considero cansativo.

Devo esclarecer que não sou religioso. Embora eu me considere, na medida do possível, um católico bom (com doses de kardecismo e pitadas de animismo, além de uma colheradinha de hinduísmo), jamais me qualificaria como um bom católico. Os que me conhecem saberão de minhas objeções à atuação missionária. Mas acho que concentrar a artilharia contra os missionários acaba por obscurecer a atribuição de culpas.

É, de fato, lamentável que, em certas ocasiões, missionários acabem ocupando um vácuo deixado pela ineficiência do poder público, de tal forma que o assistencialismo que exercem acabe se tornando mais um objeto de barganha na conquista de almas. Mas, se há um vácuo, é um resultado da ineficiência crônica do Estado -- e tal ineficiência não muda, quer sejamos governados por ex-coroinhas ou por ex-ateus.

Outro vácuo ocupado pelos missionários, no passado recente, é exatamente o do estudo das línguas indígenas. Entre outros motivos, isto resultou da falta de eficiência (e de interesse) das nossas instituições acadêmicas. Com pouquíssimas exceções, nossos intelectuais (até pelo menos a primeira metade do século passado) demonstravam muito pouco interesse pelo índio vivo, de carne e osso -- em vez disso, dedicavam-se avidamente aos índios dos livros de história, enquanto seguiam com servidão as teorias da moda (algo soa familiar, não?).

Basta, por enquanto, um exemplo sintomático. Na primeira metade do século passado, enquanto Pompeu Sobrinho (1947, PDF), um dedicado estudioso dos antigos Tapuya do domínio holandês, imaginava extinta a tribo dos Karirí, os últimos falantes da língua ainda viviam; segundo Bandeira (1972), os últimos "cortadores de língua" (ou seja, os que a falavam fluentemente) teriam falecido na década de 1960 -- estando vivos, portanto, quando da visita de Métraux (1951), que coletou um pequeno vocabulário. Este é um exemplo de uma oportunidade perdida (a de documentar, com meios modernos, uma língua em vias de extinção) e de uma tendência infelizmente comum: a de se ignorar o índio real em proveito do índio ideal.