Em quanto tempo se faz um dialeto? Ou, mais precisamente, quanto tempo leva para que diferenças dialetais entre duas comunidades lingüísticas que compartilham a mesma origem se tornem perceptíveis? A resposta, naturalmente, é que "depende". Cada caso é um caso, dependendo, entre outros fatores, do grau de isolamento entre as duas comunidades.
Este é um assunto que tem me dado o que pensar, particularmente no caso do português (ou dos portugueses?) falado nos sertões do Brasil. Qual seria, por exemplo, o primeiro registro do uso do /r/ retroflexo tão característico do dialeto caipira? Como se trata de característica radicalmente destoante do português do litoral brasileiro ou da velha metrópole, seria de se imaginar que teria sido notado logo de início. Fico imaginando um cronista luso (ou litorâneo), pouco simpático aos paulistas, criticando sua maneira "bárbara" de falar o português... Dada a raridade de informações lingüísticas deste tipo nas principais fontes do Brasil colonial e imperial, comentários pessoais, ainda que puramente impressionísticos, podem vir a ser extremamente úteis para os estudos dialetológicos.
No caso do português falado nos primeiros núcleos coloniais de Goiás, há pelo menos um registro interessante, produzido um século depois da fundação de Vila Boa (1726) -- não de diferenças específicas, mas de características "melódicas" que já então distinguiam o falar goiano do falar dos paulistas. Devemo-lo ao general Raymundo José da Cunha Mattos (1776-1839), em sua Chorographia Historica da Provincia de Goyaz, concluída em 1824 e publicada na RIHGB em 1874:
"A pronunciação da gente de Goyaz é mui doce: não obstante serem descendentes de paulistas, não têm aquella aspereza guttural que se nota nos naturaes de S. Paulo, nem a affectação feminil de muita gente de provincias mais illuminadas." (p. 311)Esta é a primeira menção à existência de características próprias ao falar dos "goyanos" de que tenho notícia. Haverá outras mais antigas, não só sobre Goiás, mas também sobre o Paraná, o Mato Grosso e outras áreas de fundação bandeirante? E quanto aos falares de outras regiões do Brasil?
Sobre a Chorographia e seu autor
A Chorographia Historica da Provincia de Goyaz foi escrita quando seu autor ocupava o cargo de governador das armas da província (1823-1826), sendo fonte obrigatória para o conhecimento da história e dos costumes dos habitantes de Goiás em seu primeiro século de colonização (ao lado das Memorias Goyanas do Pe. Luiz Antonio da Silva e Sousa). Nascido em Faro, Portugal, Cunha Mattos foi militar de destaque, tanto servindo a Portugal (na África e no Brasil), antes da Independência, quanto ao Império do Brasil. Desempenhou também papel relevante na vida intelectual do Império, tendo sido um dos fundadores do IHGB.
Como "forasteiro" em Goiás, Cunha Mattos tem um ponto de vista privilegiado ao escrever a Chorographia, notando fatos que escapariam a autores locais. Um exemplo é o breve comentário lingüístico transcrito acima. A atitude crítica que assume, não poupando críticas a muitas características dos habitantes da província tidas como censuráveis ("a sêde do ouro foi causa da descoberta de Goyaz, e a esperança do ouro tem sido a causa de sua ruina"), acaba conferindo legitimidade à descrição que faz de aspectos positivos (como, por exemplo, a beleza e modéstia das mulheres, a hospitalidade e a falta da pedante pretensão a nobreza, "ordinária em outros lugares", além da 'doçura' do falar goiano).
Cunha Mattos também escreveu vários roteiros dos lugares por onde viajou no Brasil, reunindo informações para a elaboração de vários mapas. Um deles (vide acima; clique para ampliar), que serve de complemento à Chorographia, está disponível online, no site da Biblioteca Nacional Digital (de Portugal). Para aqueles de nós interessados na história das populações indígenas, o mapa é particularmente valioso pela detalhada localização que dá dos aldeamentos indígenas.
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