Sunday, June 1, 2008

Homofonia em Macro-Jê

Detalhe (p. 97) da 'Arte y Vocabulario de la Lengua Chiquito', com as entradas para 'mano' e 'espina' (clique para ampliar)'Tecer', 'semente', 'fogo'

Nos estudos comparativos das línguas do tronco Macro-Jê (cujas raízes são, em geral, monossilábicas e de estrutura silábica relativamente simples, favorecendo, assim, a existência de homofonia), percebemos que a existência de pares homófonos acaba tendo um valor diagnóstico interessante: se um par homófono em uma língua corresponde a um par homófono em outra, é um bom sinal de que as correspondências fonológicas detectadas estão no caminho correto. Um caso que mencionei em outra ocasião (Ribeiro 2004) é o das raízes 'semente' e 'tecer' em Karajá e Jê, homófonas em ambas as famílias; pesquisando um pouco mais, descobri que a homofonia vai mais além, ocorrendo também em Maxakalí e Rikbaktsá (Ribeiro, a sair):

PJê * 'tecer', KRJ ɗɨ, MXK xap, RIK -zik
PJê * 'semente, KRJ ɗɨ, MXK xap, RIK zik 'caroço'

Nas famílias Jê e Maxakalí, a homofonia envolve também a raiz para 'fogo', cuja reconstrução inicial por Davis para o PJê, *kuzɨ, foi revista para *, graças principalmente aos dados do Panará (generosamente fornecidos por Luciana Dourado):

PJê *-sɨ 'fogo', MXK -xap (cf. Pataxó)

Em Karajá, a raiz para 'fogo', hɛkɔɗɨ, provavelmente inclui um cognato da raiz para 'fogo' nas demais línguas (*-ɗɨ), acrescido de possíveis elementos morfológicos fossilizados (cf. 'lenha', 'madeira'). Em Ofayé, as raízes para 'fogo' e 'semente' são parecidas (ʃãw e ʃa, respectivamente), mas não homófonas; se estas forem, de fato, cognatas com as formas Jê, Karajá e Maxakalí correspondentes, é provável que a homofonia não remonte ao Proto-Macro-Jê (o que parece ser corroborado também pelo Rikbaktsá izo 'fogo' e o Kipeá i-su 'fogo' -- se bem que, neste último caso, as formas para 'semente' ou 'tecer' não foram, aparentemente, documentadas).

'Carne', 'espinho', 'mão'

Tudo isto para servir de introdução a um outro caso interessante de homofonia em Macro-Jê. Em nossos estudos comparativos demonstrando a inclusão da família Jabutí no tronco Macro-Jê, Hein van der Voort e eu (a sair) havíamos notado que as raízes para 'carne' e 'espinho' são homófonas tanto na família Jabutí, quando na família Jê [exemplos do Apinajé (Jê) e Djeoromitxí (Jabutí)]. Mais uma vez, esta homofonia ocorre também em outras famílias do tronco Macro-Jê, como Rikbaktsá (-ni 'espinho', -ni 'carne') e, de certa forma, Karajá (onde, caso cognata, a forma para 'espinho' incluiria elemento morfológico extra) e Chiquitano (onde a forma para 'carne', ñ-añêe, parece incluir elemento morfológico fossilizado; cf. Adelaar 2005: cognato 23).

Apinajé ɲ-ĩ 'carne' (PJê *j-ĩ), DJE , RIK -ni, CHQ ñ-añêe, KRJ d-ɛ
Apinajé ɲ-ĩ 'espinho', DJE , RIK -ni, CHQ ñ-êe, KRJ l-ɛdɛ, MXK yĩn

E ainda mais: homófona (ou, em Maxakalí, quase homófona) com ambas as formas é a raiz para 'mão' reconstruída para o Proto-Jê (em compostos), *j-ĩ-, que tem prováveis cognatos em Chiquitano (ñ-êe), Maxakalí (yĩm) e Ofayé (j-ĩ) -- além do Karajá *d-ɛ- 'braço' (homófono de 'carne'), que ocorre em compostos:

Proto-Jê *j-ĩ- 'mão', MXK yĩm, OFY j-ĩ, KRJ *d-ɛ-'braço' (em compostos)

A mesma ressalva feita acima, com relação à forma para 'fogo' em Ofayé, Maxakalí e Rikbaktsá, deve ser feita aqui com relação à forma para 'mão' em Maxakalí: caso seja, de fato, cognata, isto sugeriria que a homofonia entre 'mão', de um lado, e 'carne'/'espinho', de outro, não remontaria ao Proto-Macro-Jê. [Há muito ainda a se aprender sobre as consoantes finais em Macro-Jê.]

Em um tronco cuja unidade genética é, para alguns, improvável, exemplos como estes -- especialmente no caso de 'semente'/'tecer' e 'carne'/'espinho', que, a julgar pelas evidências disponíveis no momento, teriam sido homófonos em Proto-Macro-Jê (Ribeiro, a sair) -- ajudam a reforçar as hipóteses de parentesco, corroborando ou aprimorando correspondências levantadas anteriormente. A menos, claro, que no final se determine (o que eu duvido) que se trata não de homofonia pura e simples, mas de padrões bem documentados de polissemia. Será?

Fontes:

Os dados do Karajá e do Ofayé são resultados de meu trabalho de campo. Os do Djeoromitxi são de Hein van der Voort. Dados do Apinajé foram obtidos da tese de doutorado de Christiane Cunha de Oliveira (2005). Dados do Chiquitano foram extraídos da "Arte y Vocabulario de la Lengua Chiquito" (1880), de Lucien Adam e Victor Henry (disponível aqui). Dados do Maxakalí e do Rikbaktsá foram extraídos dos dicionários de Popovich & Popovich (2005) e Tremaine (2007), respectivamente, ambos disponíveis no site do SIL Brasil.

Referências:

Adelaar, Willem. 2005. Relações externas do Macro-Jê: O caso do Chiquitano. To appear in Stella Telles (editor), Atas do V Encontro Macro-Jê.

Ribeiro, Eduardo R. 2004. Prefixos relacionais em Jê e Karajá: um estudo histórico-comparativo. Línguas Indígenas da América do Sul (LIAMES), 4:91-101.

Ribeiro, Eduardo R. (a sair). A reconstruction of Proto-Jê (and its consequences for the Macro-Jê hypothesis).

Ribeiro, Eduardo R & Hein van der Voort. (a sair). Nimuendaju was right: the inclusion of the Jabutí language family in the Macro-Jê stock. To appear in International Journal of American Linguistics (special volume on historical linguistics in South America, edited by Spike Gildea and Ana Vilacy Galucio).



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