Friday, June 20, 2008

Língua Geral: Mais um empréstimo em Karajá

Para o estudo das línguas Macro-Jê outrora faladas no leste brasileiro, vocabulários antigos, coletados principalmente no século XIX e no começo do século XX, são essenciais. São, em muitos casos, as únicas fontes disponíveis. Este é caso de todas as línguas das famílias Purí e Kamakã , e de grande parte das línguas das famílias Krenák e Maxakalí. Apesar de seu caráter limitado (tanto em termos quantitativos, quanto qualitativos), tais vocabulários podem fornecer pistas importantes para a compreensão do tronco (vide, a respeito, as recentes dissertações de Andérbio Martins e Ambrósio da Silva Neto, sobre as famílias Kamakã e Purí, respectivamente). Mesmo quando se imagina que já se extraiu tudo o que haveria de aproveitável nestes vocabulários, eles podem reservar alguma surpresa ao pesquisador atento.

Mesmo no caso de línguas que sobrevivem em pleno vigor e que podem hoje ser estudadas mais a fundo, vocabulários antigos permitem uma rara oportunidade de se descobrirem fatos acerca do passado lingüístico recente. Um exemplo que mencionei antes é o empréstimo maritó 'paletó' em Karajá, que, apesar de não ser mais usado hoje em dia, foi documentado por duas fontes da década de 1940. Um outro exemplo que acabo de descobrir é ainda mais interessante. Trata-se de um empréstimo da Língua Geral para 'dinheiro' -- mais um acréscimo à pequena lista de palavras da Língua Geral (Paulista, provavelmente) em Karajá, que descrevi em artigo publicado há alguns anos. [Embora contatos com falantes de Língua Geral Amazônica tenham provavelmente ocorrido ao norte do território Karajá (com falantes de Karajá do Norte e Xambioá), é provável que a grande maioria dos empréstimos tenham vindo da Língua Geral Paulista falada pelos bandeirantes, que foram os primeiros a estabelecer contato com os Karajá da Ilha do Bananal, núcleo populacional deste povo.]

No vocabulário de Eduardo Sócrates (publicado em 1892, representando o dialeto Karajá do Sul; disponível aqui), mais ou menos escondido em uma transcrição à portuguesa e desfigurado por erro tipográfico, lá estava o empréstimo: Intadiná 'dinheiro'. Embora a relação com a palavra para 'dinheiro' usada em Tupinambá (itajuba, de acordo com o Pequeno Vocabulário Português-Tupi do Pe. Lemos Barbosa) e na Língua Geral seja em princípio menos óbvia, um estudo das outras palavras no vocabulário explica as aparentes anomalias:

(1) A transcrição de Sócrates era, provavelmente, Intadiuá, onde a letra u -- substituída por n pelo tipógrafo -- representa o glide /w/ do Karajá. Isto fica claro quando se percebe que o mesmo erro tipográfico ocorre em outras palavras do vocabulário: quèná 'jatobá', por [kɨ'wa]; uaxinaté 'arco', por [waʃiwaha'ɗɛ]; cucêêné 'ema', por [kuƟehe'we].

(2) Refletindo sua pronúncia na maioria dos dialetos do português brasileiro, a seqüência di é usada por Sócrates para representar a africada [dʒ] do Karajá, como atestado em vários exemplos: diatá 'banana' [idʒa'ɗa], diú-hú 'dente' [dʒu'u], adiu 'paca' [hã'dʒu].

Assim, a palavra representada como Intadiná no vocabulário era provavelmente pronunciada como [ĩɗadʒu'wa] ~ [ĩɗadʒu'a], correspondendo perfeitamente ao provável original em Língua Geral (para correspondências semelhantes, vide os empréstimos para 'cavalo' e 'sal' no meu artigo mencionado acima). Caso tenha sido introduzido no tempo dos primeiros contatos entre os Karajá e falantes da Língua Geral Paulista, [ĩɗadʒu'wa] teria sobrevivido por cerca de dois séculos, antes de ser substituído pela atual palavra para 'dinheiro', um empréstimo do português: [nie'ru].

Embora o "Tupí da Costa" e um de seus descendentes, a Língua Geral Amazônica, sejam bem documentados, o conhecimento de seu outro descendente, a Língua Geral Paulista, é bastante limitado (cf. Aryon Rodrigues, "As línguas gerais sul-americanas"). Uma fonte indireta de conhecimento da Língua Geral Paulista acaba sendo, justamente, os empréstimos em línguas de povos com os quais os bandeirantes tiveram contato. Um dos casos mais fascinantes é o do Boróro (cf. Adriana Viana, "Sobre a língua Bororo"), indígenas de Mato Grosso que se aliaram aos bandeirantes no combate a outras tribos indígenas (inclusive os Karajá).

Sunday, June 15, 2008

"Ese famoso (y dichoso) bilingüismo paraguayo"

Acabo de ler um excelente artigo sobre o Guarani Paraguayo -- "Ese famoso (y dichoso) bilingüismo paraguayo", escrito por Bartolomeu Meliá, uma das maiores autoridades no assunto. O artigo, publicado na edição de 2005 do Anuario do Centro Virtual Cervantes (uma fonte muito útil, aliás, para quem tem interesse profissional pelo espanhol), apresenta um relato detalhado das origens do bilingüismo paraguaio, desde suas origens coloniais ao presente, incluindo o papel desempenhado pelo Guarani em momentos cruciais da história paraguaia, como as Guerras da "Triple Alianza" (conhecida, nos nossos livros de história, como a Guerra do Paraguai) e do Chaco. Eis um trecho da conclusão -- eloqüente, com uma pitada meio melancólica de poesia:

"Cuando no se hable guaraní, cuando haya huecos y vacíos, como los comienza a haber en el mapa del Paraguay, en los que ya no se habla guaraní, la política lingüística se encontrará ante una selva deforestada, un campo de soledad y triste panorama, cuya recuperación costará al fin vanos esfuerzos. El castellano estará al mismo tiempo en peores condiciones para afirmarse. Ya lo estamos experimentando. Hay un tipo de globalización que sólo difunde la «no lengua», pobre y esmirriada, de los aeropuertos de paso y de las calles sin rostro."

Saturday, June 14, 2008

['mbaba]


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My baby Zahāra, a young Obama supporter, approves this message.



[CBS News, Feb. 5, 2008]

Monday, June 9, 2008

Kynyxiwe deu samba

Popularizados pela imprensa e por obras da literatura de aventuras (de autores como Willy Aurely e José Mauro de Vasconcelos), os Karajá são talvez um dos povos indígenas que mais espaço ocupam no imaginário popular brasileiro (ou, pelo menos, no Centro-Oeste). Mesmo com isto em mente, não deixou de me surpreender um fato que acabo de descobrir: em 1979, o samba-enredo da escola de samba carioca Estácio de Sá teve como tema as aventuras de Kynyxiwe [kənãʃi'wɛ], "trickster" que, na mitologia Karajá, é o responsável pela aquisição do fogo pela humanidade, entre outras façanhas. Trata-se do samba "Das trevas ao sol, uma odisséia dos Karajás" (de autoria de Elinto Pires e Leleco, interpretado por Leleco; letra e música disponíveis aqui):

Olê, olê
Olê, olá (bis)
Se a vida tem segredo
Urubu-rei pode contar

Conta a lenda
Que os Karajás
Vieram do furo das pedras
Tal e
qual os javaés
E os Xambioás
No seu mundo encantado
Só na velhice
que a morte acontecia
E a Siriema despertou, ô ô
A curiosidade que havia
Kaboi, o avoengo reuniu
Guerreiros para explorar a terra
E ficou
desiludido
Resolveu contar tudo a seu povo
Que dividido partiu para um
mundo novo
Kanaxivue
Bravo guerreiro casou com Mareicó
E foi
procurar a luz
Para tornar o seu mundo bem melhor
Morreu numa imensa
odisséia
Quando urubu-rei apareceu
Lhe deu vida, o Sol, as estrelas
E o luar
E assim surgiu
A lenda dos Karajás

Não só de Kynyxiwe consiste o enredo, que também menciona um outro personagem de peso, Koboi [kəbo'i] (que, por sinal, não parece ocorrer no conjunto de histórias que têm Kynyxiwe como protagonista). Imagino que os autores do samba tenham se baseado na literatura etnográfica então existente e desconfio que, mais precisamente, tenham se baseado em trabalhos de Herbert Baldus, considerando, por exemplo, a maneira como escreveram o nome do nosso herói: Kanaxivue (vide o artigo de Baldus, de título idêntico, disponível na Biblioteca Digital Curt Nimuendaju). É claro que o samba toma algumas liberdades poéticas. Mas não deixa de ser uma homenagem bem merecida a uma cultura fascinante.

Sunday, June 1, 2008

Homofonia em Macro-Jê

Detalhe (p. 97) da 'Arte y Vocabulario de la Lengua Chiquito', com as entradas para 'mano' e 'espina' (clique para ampliar)'Tecer', 'semente', 'fogo'

Nos estudos comparativos das línguas do tronco Macro-Jê (cujas raízes são, em geral, monossilábicas e de estrutura silábica relativamente simples, favorecendo, assim, a existência de homofonia), percebemos que a existência de pares homófonos acaba tendo um valor diagnóstico interessante: se um par homófono em uma língua corresponde a um par homófono em outra, é um bom sinal de que as correspondências fonológicas detectadas estão no caminho correto. Um caso que mencionei em outra ocasião (Ribeiro 2004) é o das raízes 'semente' e 'tecer' em Karajá e Jê, homófonas em ambas as famílias; pesquisando um pouco mais, descobri que a homofonia vai mais além, ocorrendo também em Maxakalí e Rikbaktsá (Ribeiro, a sair):

PJê * 'tecer', KRJ ɗɨ, MXK xap, RIK -zik
PJê * 'semente, KRJ ɗɨ, MXK xap, RIK zik 'caroço'

Nas famílias Jê e Maxakalí, a homofonia envolve também a raiz para 'fogo', cuja reconstrução inicial por Davis para o PJê, *kuzɨ, foi revista para *, graças principalmente aos dados do Panará (generosamente fornecidos por Luciana Dourado):

PJê *-sɨ 'fogo', MXK -xap (cf. Pataxó)

Em Karajá, a raiz para 'fogo', hɛkɔɗɨ, provavelmente inclui um cognato da raiz para 'fogo' nas demais línguas (*-ɗɨ), acrescido de possíveis elementos morfológicos fossilizados (cf. 'lenha', 'madeira'). Em Ofayé, as raízes para 'fogo' e 'semente' são parecidas (ʃãw e ʃa, respectivamente), mas não homófonas; se estas forem, de fato, cognatas com as formas Jê, Karajá e Maxakalí correspondentes, é provável que a homofonia não remonte ao Proto-Macro-Jê (o que parece ser corroborado também pelo Rikbaktsá izo 'fogo' e o Kipeá i-su 'fogo' -- se bem que, neste último caso, as formas para 'semente' ou 'tecer' não foram, aparentemente, documentadas).

'Carne', 'espinho', 'mão'

Tudo isto para servir de introdução a um outro caso interessante de homofonia em Macro-Jê. Em nossos estudos comparativos demonstrando a inclusão da família Jabutí no tronco Macro-Jê, Hein van der Voort e eu (a sair) havíamos notado que as raízes para 'carne' e 'espinho' são homófonas tanto na família Jabutí, quando na família Jê [exemplos do Apinajé (Jê) e Djeoromitxí (Jabutí)]. Mais uma vez, esta homofonia ocorre também em outras famílias do tronco Macro-Jê, como Rikbaktsá (-ni 'espinho', -ni 'carne') e, de certa forma, Karajá (onde, caso cognata, a forma para 'espinho' incluiria elemento morfológico extra) e Chiquitano (onde a forma para 'carne', ñ-añêe, parece incluir elemento morfológico fossilizado; cf. Adelaar 2005: cognato 23).

Apinajé ɲ-ĩ 'carne' (PJê *j-ĩ), DJE , RIK -ni, CHQ ñ-añêe, KRJ d-ɛ
Apinajé ɲ-ĩ 'espinho', DJE , RIK -ni, CHQ ñ-êe, KRJ l-ɛdɛ, MXK yĩn

E ainda mais: homófona (ou, em Maxakalí, quase homófona) com ambas as formas é a raiz para 'mão' reconstruída para o Proto-Jê (em compostos), *j-ĩ-, que tem prováveis cognatos em Chiquitano (ñ-êe), Maxakalí (yĩm) e Ofayé (j-ĩ) -- além do Karajá *d-ɛ- 'braço' (homófono de 'carne'), que ocorre em compostos:

Proto-Jê *j-ĩ- 'mão', MXK yĩm, OFY j-ĩ, KRJ *d-ɛ-'braço' (em compostos)

A mesma ressalva feita acima, com relação à forma para 'fogo' em Ofayé, Maxakalí e Rikbaktsá, deve ser feita aqui com relação à forma para 'mão' em Maxakalí: caso seja, de fato, cognata, isto sugeriria que a homofonia entre 'mão', de um lado, e 'carne'/'espinho', de outro, não remontaria ao Proto-Macro-Jê. [Há muito ainda a se aprender sobre as consoantes finais em Macro-Jê.]

Em um tronco cuja unidade genética é, para alguns, improvável, exemplos como estes -- especialmente no caso de 'semente'/'tecer' e 'carne'/'espinho', que, a julgar pelas evidências disponíveis no momento, teriam sido homófonos em Proto-Macro-Jê (Ribeiro, a sair) -- ajudam a reforçar as hipóteses de parentesco, corroborando ou aprimorando correspondências levantadas anteriormente. A menos, claro, que no final se determine (o que eu duvido) que se trata não de homofonia pura e simples, mas de padrões bem documentados de polissemia. Será?

Fontes:

Os dados do Karajá e do Ofayé são resultados de meu trabalho de campo. Os do Djeoromitxi são de Hein van der Voort. Dados do Apinajé foram obtidos da tese de doutorado de Christiane Cunha de Oliveira (2005). Dados do Chiquitano foram extraídos da "Arte y Vocabulario de la Lengua Chiquito" (1880), de Lucien Adam e Victor Henry (disponível aqui). Dados do Maxakalí e do Rikbaktsá foram extraídos dos dicionários de Popovich & Popovich (2005) e Tremaine (2007), respectivamente, ambos disponíveis no site do SIL Brasil.

Referências:

Adelaar, Willem. 2005. Relações externas do Macro-Jê: O caso do Chiquitano. To appear in Stella Telles (editor), Atas do V Encontro Macro-Jê.

Ribeiro, Eduardo R. 2004. Prefixos relacionais em Jê e Karajá: um estudo histórico-comparativo. Línguas Indígenas da América do Sul (LIAMES), 4:91-101.

Ribeiro, Eduardo R. (a sair). A reconstruction of Proto-Jê (and its consequences for the Macro-Jê hypothesis).

Ribeiro, Eduardo R & Hein van der Voort. (a sair). Nimuendaju was right: the inclusion of the Jabutí language family in the Macro-Jê stock. To appear in International Journal of American Linguistics (special volume on historical linguistics in South America, edited by Spike Gildea and Ana Vilacy Galucio).



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